quarta-feira, 10 de julho de 2013

Trechos e apontamentos acerca de Adorno em "O conceito de iluminismo" parte 2

Continuando a postagem anterior;

Para Adorno, mito e iluminismo se confundem, até certo ponto, em sua essência: o mito possui as raízes do iluminismo em suas características de visão-de-mundo , ou seja, ele percorre o mundo com um olhar que separa e classifica de acordo com suas próprias convicções. Deste modo, o mito se aproxima do iluminismo na medida que este também subjuga as demais perspectivas de um modo autocrático; o que é entendido pelo iluminismo é tragado em sua estrutura de pensamento e digerido para que possa então ser assimilado ou então expelido, se acaso não for possível adequar-se ao organismo do iluminismo. Retomando estas características, observamos que o iluminismo se comporta muito bem como uma cultura fechada; para o qual é interessante lembrar certos conceitos de Claude Lévi Strauss; a atitude diante à perspectivas (culturas, ou na acepção original; tribos rivais) uma determinada cultura fechada tende a reagir de duas formas diferentes: uma é a antropofágica, cuja a tendência é a "desalienação" das substancias alheias, ou seja, a tendência de absorver o estranho para dentro de si e torna-lo parte do corpo, e a outra atitude consiste naquilo que Strauss chama de "antropoêmica" que literalmente expele os corpos estranhos para fora do organismo cultural. Desta forma, a atitude primária do iluminismo se caracteriza-se pela condição antropofágica, de absorver as perspectivas diferentes que "iludem o homem pela imaginação" e verificar-lhes um fundamento de acordo com os pressupostos iluministas. Se essa "digestão" incorrer numa verificação de algum traço aquele corpo estranho é aceito na medida em que se adaptar a visão iluminista, confirmando seu legado extraordinário. Porém se acaso resultar em uma "má digestão" o corpo  é expelido para fora e classificado como venenoso: ninguém deve-se aproximar ou tentar sorver-se de algo tóxico o suficiente à levar a morte (neste caso, da liberdade humana, segundo o iluminismo).
"Assim como os mitos já são iluminismo, assim também o iluminismo se envolve em mitologia a cada passo mais profundamente. Ele recebe todo seu material dos mitos, para então destrui-los, e, enquanto justiceiro, cair sobre o encantamento mítico" [1]. Deste modo o iluminismo em sua perspectiva autocrática de mundo revela-se como um mito na medida em que ordena e classifica o mundo de acordo com a razão instrumental. A atitude de classificar, atribuir e hierarquizar é algo próprio da mitologia na medida em que experimenta do mundo os fatos para atribuir-lhe um sentido próprio dentro do seu corpo de definições e valores.
O iluminismo opera segundo o principio da "repetição" ou principio da imanência: para Adorno este principio é o fundamento do iluminismo em seu credo de objetualização da natureza, aquela concepção em que a causalidade define as diferentes formas e essências do mundo com iguais umas as outras e apenas aparentemente diferentes por conta de suas relações determinadas e cognocíveis apenas à luz da razão instrumental. O objetivo do iluminismo, sua sabedoria ressequida, aquilo que pertence ao ideal a ser alcançado e digno de ser perseguido, consiste na determinação destas leis causais e conhecimento das diferentes formas através da razão instrumental; assim quando tudo for "conhecido" (determinado racionalmente), quando todas as coisas não passarem de disseminações entre si, e quando o homem for senhor do mundo (através dessa determinação do mundo), só então o iluminismo terá findado sua busca. Isto revela o traço de dominação do pensamento iluminista, entregando não só o que deve-ser, mas também aquilo que é digno: tornar o é em deve-ser.
Indo mais além, usando seu fundamento de que tudo é igual à tudo na medida da determinação, o iluminismo dissolve na mente do homem a aquela desigualdade original entre as coisas e suas qualidades. Fazendo justiça, não existem diferenças, a fim de exemplo, entre homens e suas posses. Mas também o iluminismo é auspicioso à dirigir-se a essas igualdade em âmbito universal: tudo é igual a tudo. Com efeito, não existe mais aquilo de incomensurável, indeterminado, aquilo que é por si, tudo passa a ser mais uma cópia do mesmo através da igualdade de tudo com tudo baseada na determinação racional. Neste ponto, na esfera antropológica, o iluminismo entrega ao homem a individualidade na medida em que este passa a ser como igual a todos os outros entes do mundo, sem distinções. O homem é indivíduo, mas um indivíduo é igual ao outro indivíduo, e além disso não é menos verdade para o iluminismo que todos os homens sejam indivíduos; portanto, iguais. Com efeito, o iluminismo segundo Adorno dá aos "homens um si-mesmo próprio a cada um e distinto do outros e de todos, só para que se torne, com mais segurança, igual aos outros" [1]. Uma consequência fundamental disso é a conformidade com a realidade, pois diante de um mundo de cópias e igualdade nada é novo, tudo aquilo que é e deve-ser, nada menos que um destino: o caminho perene da razão instrumental e sua transformação do mundo por autoridade suprema do iluminismo.
A ferramenta iluminista, a abstração, para subjugar o mundo, é também detentora de características políticas interessantes: ela se assemelha a aquela organização industrial, de repetição na medida em que tudo da natureza pode ser repetido por conta da instrumentalização. Sabedoria e viver são nada mais vistos como um produzir industrial, deste modo o homem identifica-se com seu mundo próprio da produção artificial, e o identifica finalmente com o mundo possível. Aquele principio fundamental, a distancia e estratificação do ser e objeto, a classificação e hierarquização do mundo, desenvolve-se no seio da lógica formal, e que para todos os fins é aquela mesma que define tudo o que é para-ser mas não é; ou seja, é a desveladora de entes do mundo, e sua delineação percorre a criação e destruição de tudo o que existe ou pode existir, é portanto, Deus. Deste modo, o homem, agora indivíduo é o criador do criador, enquanto tudo o que é é deve-ser perante seu próprio Deus.
"O si-mesmo que, com a sujeição do mundo, aprendeu a ordem e a subordinação, não tardou a identificar a verdade em geral como um pensar que dispõe, cujas firmes diferenciações são imprescindíveis para que possa subsistir".[1] O indivíduo proclamado si-mesmo pelo iluminismo, percorre sua peregrinação perene e procrastinadora sobre o mundo-instrumento, feito em seu credo uma criação própria, e portando é um Deus daquilo que lhe aprisiona e ao mesmo tempo lhe pune. Viver em tal circunstância, em negar aquilo que é pelo aquilo que podemos absorver e instrumentalizar, é o traço do cientismo exacerbado... e cá entre nós, ainda presente nós dias de hoje na maior parte das pessoas.

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